domingo, 19 de abril de 2015

EU E O RACISMO: FORA DA CURVA NUMA SOCIEDADE OPRESSORA

Tenho conversado recentemente com amigxs sobre uma sensação que sempre me incomodou ao longo da minha vida escolar e que se intensificou muito na Universidade, tanto na sala de aula como no Movimento Estudantil.

Eu leio, escrevo e falo bem. Sou um ponto fora da curva em relação ao sistema racista que provoca, dentre tantas coisas, dificuldades e traumas na trajetória escolar e timidez. Não que eu não tenha passado por inúmeras situações do tipo, mas, felizmente, não constituíram uma barreira para o meu aprendizado e minha expressão.

Em poucas palavras, vejo que as pessoas se surpreendem demais comigo quando verificam essas capacidades (leitura, escrita, oratória) porque não esperam isso de um jovem negro. Se eu fosse branco duvido que isso aconteceria porque estaria sendo aquilo que se espera; como não sou, uma exagerada surpresa aparece devido a quebra de expectativas.

Sempre vale lembrar que eu adquiri essas capacidades porque minha formação inicial e básica foi numa escola de qualidade, que valorizava uma inteligência lógica na qual eu tinha aptidão; isso me permitiu ter espaço para estudar, formular, duvidar, etc. Algo muito parecido com o que a classe média tem à sua disposição nas escola particulares que frequenta. Se eu tivesse estudado nas escolas públicas do meu bairro creio que minha formação teria sido diferente.

Além disso, estudar pra mim também era uma mecanismo de autorrealização e refúgio, pois, sendo muito pobre, não podia me realizar adquirindo bens - imperativo de realização pessoal da nossa sociedade capitalista. Por isso, procurava não pular etapas e aproveitar cada conteúdo estudado de forma a torná-lo relevante.

Fora desse lugar-comum onde eu deveria ter problemas na escola e ser mais inseguro acho plausível que haja certa surpresa, mas o "excesso" pra mim constitui uma forma muito sutil de racismo, pautado num determinismo. Ao identificar tais capacidades não era/é raro as pessoas projetarem suas expectativas. Por vezes já me senti incrível quando atendia a elas ou mesmo muito fracassado quando não.

Lembro de quando, no final do Ensino Médio, muitxs colegas, especialmente xs negrxs, me diziam para prestar Medicina e Direito e se frustravam quando eu dizia que queria fazer Jornalismo seguido de Letras. Achavam que era um "desperdício de inteligência" e que eu deveria escolher minha profissão pelo retorno financeiro. Mas a essa altura eu não acreditava mais no dinheiro e já era conhecida minha paixão pela linguagem.

Essa situação simboliza pra mim uma esperança compartilhada de que eu ocuparia um lugar hegemonizado pelxs brancxs e "faria a diferença". Lembro da recorrente comparação com o Obama, recém eleito na época, como um exemplo disso.

A entrada na Unicamp não encerrou o excesso de projeção, mas trouxe contornos, diria, mais perversos porque tive que lidar com expectativas majoritariamente brancas.

Na sala de aula, já vivi muitas situações onde professorxs e colegas se admiravam demais com minhas considerações só porque eram bem construídas. Quando colegas brancxs também faziam considerações interessantes a admiração era menor ou inexistente. Isso me deu por vezes a sensação de que "estava arrasando", mas hoje avalio que era porque eu não sou branco como eles. O inverso também é verdadeiro. Quando eu dizia notada bobagem, nenhuma reação; quando eram eles, cara feia.

Nem vou falar sobre quando já discordei abertamente dxs professorxs! "Por que esse negro não tá pagando pau pra mim, brancx, também? Por que não tá no seu lugar de condescendência?"

No Movimento Estudantil tal padrão se repete e piora. A esquerda universitária branca incorpora um discurso antirracista que os impede de nos enxergar para além de vítimas e frequentemente nos destitui de agência.

Lembro que uma amiga me convidou para aderir ao grupo dela, dizendo que era importante que um negro como eu lutasse naquela organização e dizendo o que significava o racismo; não perguntou minha opinião. Lembro também de uma amiga que aderiu a uma chapa no início do curso e num dos debates ouviu uma companheira dizer que eles lutavam contra o racismo, inclusive tinham uma negra na chapa. "Não somos racistas, temos até amigxs".

O que dizer então quando você é negro, não fala "gírias" e discute gentrificação? "Segurem esse negro! Minha cabeça não processa a existência dele!"

Esse é o retrato fiel de uma esquerda universitária, branca, de classe média e enlatada que reproduz o papel do "bom branco" que luta pelxs negrxs e impede que nós lutemos por nós mesmos - inclusive contra o racismo que ela mesmo pratica. Querem rebanhos e não pessoas politizadas, autônomas e agentes.

Apesar de me considerar exceção, não estou imune à opressão e isso já me prejudicou de várias formas. Eu fui o primeiro da minha família a entrar na universidade pública e isso significa que não tinha uma experiência compartilhada para evitar certos erros na forma como encaminhei meus estudos e minha militância. O ME não foi capaz de dar conta disso.

Agora vivo um momento interessante que me mostra outra faceta desse racismo sutil: estou na reta final da minha graduação. Ao falar isso com amigxs, muitxs delxs brancxs, muitos apresentaram suas opiniões sobre como me veem e para onde eu deveria ir depois da graduação. Interpreto esse conjunto de sugestões como aquelas mesmas projeções diante da escolha do meu curso no final do Ensino Médio. Entretanto, não se trata de um desejo por certa representatividade, mas sim, expectativas mal-resolvidas de pessoas que me reconhecem semelhante intelectualmente, mas desconsideram que nem todas as portas da sala de aula, da academia, do movimento social e do meu próprio partido podem estar abertas para mim como estão para elxs.

Eu já sofri racismo em todos esses espaços e isso me faz estar inseguro quanto a escolher qualquer um desses caminhos, que são os que mais me interessam. Dessa forma, esses apontamentos bem-intencionados deixam evidente que essas pessoas consideram que a minha aptidão vai passar por cima do racismo estrutural do Brasil. A perversidade dessa situação é não enxergar a diferença e a desigualdade que enfrento e enfrentarei.

Eu sou um estudante negro num lugar que não foi feito pra eu estar e tenho vontade de ir pra outros onde também não serei bem-vindo. Isso está acima de qualquer habilidade e eu não seria o primeiro nem o último negro a ser desprezado por ser quem eu sou. Se eu fosse branco, seria apenas um estudante prestes a me formar e com um futuro promissor e sem obstáculos.

Sem mágoas, concluo dizendo que a superação do racismo se dará pela luta política do povo negro organizado e com o envolvimento de toda a sociedade. Não basta delegar apenas a nós tal responsabilidade. O atual conjunto da universidade, em especial, deve repensar como lida conosco na nossa experiência aqui dentro e nos dar o apoio e a escuta a que temos direito. E isso não vai acontecer de forma efetiva até que sejam instituídas cotas raciais para que estudantes negrxs parem de acessar a universidade pública a conta-gotas.